Contactando a realidade
A afetividade está sempre atuando na pessoa e todos os conteúdos do acontecer mental, que são as vivências, possuem sempre um conteúdo afetivo. Nas vivências o significado afetivo é prevalente e mesmo as vivências praticamente sem significado afetivo, como, por exemplo, na atividade exclusivamente cognitiva do raciocínio, existe sempre um componente afetivo. A afetividade é, portanto, uma atividade.
Falar que a afetividade é uma atividade enfatiza a idéia de que ela é essencialmente dinâmica e é nesse dinamismo que aparece a maior riqueza da vida mental, quer pela sua variabilidade, quer pela sua flexibilidade e possibilidades de transformação. Neste sentido, cabe perfeitamente designá-la como uma atividade.
A Afetividade é Significante
A natureza da afetividade é basicamente a de um estado significante, que dá um significado especial – o significado afetivo – sobre as coisas e os acontecimentos vividos, isto é, sobre os conteúdos das vivências. O estado é meu, o significado é meu, mas se trata do significado sobre algo. Esse significado adjetiva as vivências e os objetos.
O significado afetivo, então, se atrela ao objeto além da sua definição. É assim, por exemplo, que quando encontramos uma pessoa de quem gostamos muito sentimos alegria. Podemos dizer que a vivência que temos em encontrar essa pessoa se impregna de alegria. Atrela-se, assim, à imagem que temos dessa pessoa naquele momento nossa alegria em encontrá-la. Mas a imagem da pessoa, quem ela é, suas características, nada têm a ver com a alegria que sentimos. Trata-se de um significado que transcende ao objeto, mas que é aposto a ele.
Não se trata de querermos sentir alegria ao ver a pessoa, apenas sentimos essa alegria. Da mesma forma, pode acontecer de, ao nos despedir dessa pessoa, o afastamento nos cause tristeza. Mesmo sem querer sentir tristeza. É assim que um mesmo objeto pode implicar numa vivência impregnada de diversos sentimentos. Em dois momentos diferentes o mesmo objeto adquire um significado afetivo oposto, sem deixar de ser exatamente o mesmo objeto. O significado é uma qualidade vivenciada sobre o objeto, qualidade essa que varia conforme o significado do momento vivencial em relação ao objeto.
Contactando a Realidade
A nossa cultura registra em Platão (427-374 AC) a primeira reflexão sobre uma nova espécie de realidade experimentada pelo ser humano e que não corresponde exatamente à realidade objetivamente verdadeira: trata-se da realidade psicológica. Santo Agostinho (354-430 d.C.), considerado grande inspirador do movimento existencialista e até da psicanálise, inspirou sua obra na realidade das experiências interiores do ser humano, propondo a idéia de que os sentimentos são dominantes e que o intelecto é seu servo.
Em seu livro Confissões, Santo Agostinho foi o primeiro a centralizar-se na introspecção psicológica, sugerindo também, uma completa revisão do pensamento anterior, segundo o qual o raciocínio dedutivo era o único instrumento de constatação da verdade e da realidade (racionalismo). Ele negava, categoricamente, a capacidade do ser humano para encontrar a verdade confiando apenas em suas próprias faculdades.
John Locke (1632-1704) acreditava também na existência de duas realidades: uma delas conferida pela percepção dos objetos e denominada experiência exterior e uma outra, determinada pela percepção dos sentimentos e desejos, a que chamou de experiência interior. A doutrina de Locke foi muito bem desenvolvida por Berkeley (1685-1753) e por David Hume (1711-1776), os quais concluíram que nenhum conhecimento absoluto é possível, e aquilo que sabemos da realidade é baseado na experiência subjetiva (experiência interior), a qual não reflete necessariamente o quadro verdadeiro do mundo. William James (1842-1910), no século passado, enfatizou a natureza altamente pessoal dos processos de pensamento e o caráter sempre mutável das percepções do mundo, alteradas que são pelo estado subjetivo da pessoa que percebe.
Perceber a realidade exatamente como ela é tem sido uma tarefa totalmente impossível para o ser humano. Nós nos aproximamos variavelmente da realidade, de acordo com nossas paixões, nossos interesses, nossas crenças, nosso acervo cultural, etc. É assim, por exemplo, que uma pessoa perdidamente apaixonada terá um julgamento muito pessoal acerca da pessoa que ama. Normalmente, nestes casos, a força da paixão turva a avaliação objetivamente correta do objeto amado. Da mesma forma pode-se dizer que a realidade experimentada por um botânico diante de uma orquídea será sempre diferente da realidade experimentada pelo poeta, acerca da mesma orquídea. A realidade do índio pode ser plena de determinados deuses que estão ausentes na nossa, assim como nossos micróbios não participam da realidade dele e assim por diante.
Embora a representação do real seja particular em cada um de nós, como dissemos, a compreensão do mundo percebido e introjetado deve ser organizada segundo as regras comuns de um mesmo sistema cultural e, desta forma, tornar possível a convivência e a comunicação entre as pessoas de uma mesma cultura. Este sistema sócio-cultural que reconhece o direito da apercepção (ou procepção, ou representação) de cada um de nós, também estabelece uma determinada faixa de compatibilidade entre as pessoas. Uma faixa de variáveis onde as diversas maneiras de experimentar e sentir o mundo não comprometa a viabilidade da vida gregária.
A esta faixa de congruência sugerimos chamar de Concordância Cultural. Trata-se de um conjunto de valores, normas e modelos capazes de definir um determinado grupo cultural e identificar os indivíduos de um mesmo sistema mediante um contacto mais ou menos consensual com certos aspectos da realidade.
Assim sendo, as infinitas variações pessoais na representação da realidade devem, apesar de infinitas, manter-se dentro da concordância cultural para serem consideradas normais. Seria como a variação infinita das impressões digitais. Mesmo diante da infindável variedade entre todas as impressões digitais, há alguma concordância entre elas. No momento em que nos defrontamos com impressões digitais formadas por linhas retas e paralelas, ou regularmente quadradas e concêntricas, certamente estaremos diante de impressões digitais anormais.
Representação, Apercepção e/ou Procepção.
Portanto, a representação da realidade transcende significativamente a simples percepção do mundo; é aquilo que o mundo representa para a pessoa depois de nela introjetado ou por ela apreendido. Desta forma, enquanto o caráter da sensopercepção é mais bem entendido em nível predominantemente neuro-sensorial, através dos cinco sentidos, a representação é predominantemente impregnada de um valor afetivo particular do sujeito, portanto, em nível afetivo-psicológico.
Uma simples rosa pode ser percebida fisiologicamente através da visão, tato ou olfato, porém, será ricamente representada através do subjetivismo da pessoa. Pode até ser dispensável, nesta representação, a presença física do objeto rosa. Da mesma forma que a palavra mãe, a qual pode ser percebida pela visão se for escrita ou pela audição, se falada, tem a representação interna tocada pela afetividade de cada um e jamais será igual entre as pessoas.
O texto de Jung é bastante explicativo:
“… parece que o consciente flui em torrentes para dentro de nós, vindo de fora sob a forma de percepções sensoriais. Nós vemos, ouvimos, apalpamos e cheiramos o mundo, e assim temos consciência do mundo. Estas percepções sensoriais nos dizem que algo existe fora de nós, mas elas não dizem o que esse algo seja em si. Esta é uma tarefa não do processo perceptivo, mas do processo de apercepção. Este último tem uma estrutura altamente complexa. Não que as percepções sensoriais sejam algo simples, mas a sua natureza é menos psíquica do que fisiológica. A complexidade da apercepção, pelo contrário, é psíquica”.
Portanto, Jung identifica a representação da qual falamos, com a apercepção, algo responsável pela significação da coisa ou do que é a coisa em si. Neste caso, se a essência das coisas é determinada mais pelo pensamento e emoção que pela percepção neurológica, esta (a essência das coisas) será sempre pessoal e individual, então o significado essencial das coisas será igualmente pessoal e individual.
Allport é outro autor preocupado com a questão da representação do mundo. Para ele, o que Jung chama de apercepção é tratado com o nome de procepção: mais um sinônimo para a representação interna. Diz-nos, Allport:
“… existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, bem como desenvolver a própria visão do mundo. Em cada momento cada um de nós realiza, à sua maneira, a sua transação entre o Eu e o mundo. Seria impossível enumerar todos os amplos tipos de orientação proceptiva que servem para distinguir os homens entre si. Uns têm uma mentalidade dominante para o passado, outros para o presente e alguns para o futuro. Para alguns o mundo é um lugar hostil, os homens são maus e perigosos; para outros é um palco para folias e brincadeiras”.
Mesmos fatos, mesmas situações e mesmos acontecimentos podem ser experimentados por uma enorme variedade de pessoas e representados de infindáveis maneiras. A guerra, por exemplo, onde participam milhares de pessoas, pode representar uma coisa diferente para cada um; embora seja traumática para a expressiva maioria das pessoas que dela participa, será mais traumática para os que neurotizam, demasiadamente traumática para os que psicotizam, apenas desagradável para alguns, e até boa para os vencedores e para os fanáticos, e assim por diante… Enfim, cada personalidade apercebeu-se da guerra de uma maneira completamente diferente.
Bandler afirma haver uma irredutível diferença entre o mundo e a nossa experiência sobre o mesmo. Nosso pensamento, em seu desenvolvimento espontâneo, tem uma necessidade imperiosa de emancipar-se da realidade dos fatos apresentados pelos sentidos. Este seria o mais importante e brilhante mecanismo responsável por nossa capacidade de abstração e de criação, e sem ele a espontaneidade e a liberdade estariam irremediavelmente comprometidas. Existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, desenvolver uma concepção interior do mundo com características próprias. Entretanto, em nome da vida em sociedade, as pessoas devem manter-se sempre razoavelmente ligadas a uma realidade recomendada pela concordância cultural. Vem daí o ditado, segundo o qual “a aventura pode ser louca, o aventureiro, porém, necessariamente dever ser lúcido”.
A capacidade de a pessoa ser ela mesma está no seu esforço (e no sucesso) em compatibilizar seu mundo interior com a realidade externa, controlar seu mundo de forma a viver nele dominando-o de maneira realística. Existe uma parcela de nossa consciência que é emancipada da objetividade dos fatos e do mundo dos sentidos, uma parte que nos torna únicos na maneira de ser e sentir o mundo. Existe também, uma outra parcela da consciência a nos identificar todos como membros de um mesmo sistema sócio-cultural, compatível com uma concordância coletiva e consensual. Allport facilita esta situação ao sugerir a idéia sobre Procepção Individual e Procepção Cultural.
A Procepção Cultural representa o conjunto das respostas culturalmente formadas e estabelecidas, respostas culturais a determinados fatos vividos. A poligamia, por exemplo, é diferentemente representada pela cultura cristã ocidental e pela cultura islâmica oriental. Assim como o monoteísmo existente nossa cultura e o politeísmo em culturas indígenas.
Resumindo, podemos dizer que todo ser humano tem uma maneira peculiar e muito pessoal de representar a sua realidade, e faz isso com arbítrio suficiente para libertá-lo do estreito mundo dos sentidos. Por causa disso ele é capaz de criar, abstrair, pensar além do real e sonhar. Entretanto, mesmo diante desta diversidade representativa, mesmo respeitando sua liberdade ao irreal, está o indivíduo atrelado à concordância cultural de seu meio e, esta, funcionando como uma faixa de tolerância onde deverão situar-se as infindáveis maneiras de representar a realidade.
Os Valores e a Representação da Realidade
Nossos sentimentos diante dos fatos e das pessoas, sejam eles empáticos, apáticos ou antipáticos, sejam de prazer ou de desprazer, de felicidade ou tristeza, etc., dependerão dos valores que atribuímos à realidade sentida. Tais valores, entenda-se, serão sempre atribuição do sujeito, capaz que é de atribuir valores, e não características próprias do objeto. Os objetos não se auto-atribuem valores.
Portanto, a representação da realidade, de fato, repousa na capacidade da pessoa atribuir valores, é uma concepção ontológica individual do real. Segundo o filósofo Nicolai Hartmann, existiriam quatro categorias de valorização possíveis de atribuir-se à realidade para se construir uma representação pessoal da existência. Seriam os valores materiais, vitais, anímicos e espirituais. Cada uma dessas categorias necessitaria da anterior para existir e cada uma delas procura se emancipar da anterior. Vamos pensar em cada uma dessas categorias separadamente, apesar de sabermos que em nosso interior todas quatro estão intimamente e dinamicamente atreladas umas às outras.
a. – Categoria Material de Valorizar a Realidade
Com a categoria material nos referimos ao corpo, ao fisiologismo da sensopercepção, ao componente neuro-psico-biológico necessário para o contacto primeiro com o mundo que nos rodeia. Construir a realidade a partir do orgânico humano implica na integridade dos órgãos dos sentidos, das vias nervosas sensitivas, do Sistema Nervoso Central (SNC) e, principalmente, na capacidade integradora desses estímulos no SNC. Estamos falando das habilidades sensoperceptivas e de suas variações.
A representação da realidade, baseada na categoria material de conhecer o mundo, se dá através da percepção e da sensibilidade perceptiva que a pessoa têm da realidade consciente, inicialmente através dos estímulos que apreendemos pela primeira vez, em seguida, através da transformação dessa percepção em realidade consciente e, por fim, através das percepções posteriores à realidade consciente, onde entram em ação as capacidades de memória, de representação e de integração do SNC.
Como as constituições orgânicas entre as pessoas são diferentes, diferentemente valorizarão materialmente (organicamente) a realidade. Assim sendo, não devemos pretender que uma melodia, uma pintura, um estilo arquitetônico, um requinte culinário, uma paisagem, uma temperatura ambiente ou uma flor sejam igualmente valorizados entre diversas pessoas, nem pretender que nosso próximo valorize qualquer evento da mesma forma como o valorizamos.
b. – Categoria Vital de Valorizar a Realidade
A pessoa aqui e agora pode ser entendida como resultado daquilo que ela trouxe ao mundo com aquilo que o mundo lhe deu (fenótipo = genótipo + ambiente). Na categoria vital de valorizar a realidade interessa aquilo que a pessoa trouxe ao mundo, ou seja, seu perfil vital, diga-se, seu perfil personal, diga-se ainda, a constituição básica de sua personalidade. Kurt Schneider se utilizou desse sistema para apoiar a idéia das Depressões Vitais, dentro das Alterações Depressivas do Humor.
Segundo Schneider, essas depressões vitais seriam estados afetivos (depressivos) originários do interior da pessoa, de sua sensibilidade afetiva constitucional. Assim como existem pessoas constitucionalmente introvertidas, existiriam também aquelas constitucionalmente mais sentimentais. Através desses sentimentos vitais a realidade teria uma representação pessoal que ultrapassa o meramente real e concreto. Ela estaria atrelada a valores afetivos e sentimentais. As concepções pessoais da realidade e os sentimentos determinados por essa categoria vital não seriam baseados exclusivamente em situações reais.
Em psiquiatria, quando um sentimento é conseqüente a uma situação real chamamos de reativo (em reação à…). A depressão associada a situações reais seria uma Depressão Reativa, ou seja, uma reação depressiva a algum evento desencadeante. É o caso, por exemplo, dos sentimentos depressivos que experimentamos diante de perdas concretas. Outras conseqüências emocionais atreladas a situações reais seriam ainda o Transtorno de Ajustamento com sintomas depressivos ou a Reação Pós-Traumática ao Estresse, quando então a pessoa reage a mudanças de vida e acontecimentos desencadeantes. Existem ainda, por outro lado, estados emocionais que valorizam situações imaginárias, representado, por exemplo, pela Neurose Depressiva ou, como se prefere atualmente, pelos casos denominados de Distimia, mais leves, ou pelo Episódio Depressivo Leve.
Se fôssemos adequar a categoria vital de valorizar a realidade à teoria jungueana, possivelmente encaixaríamos aqui os tipos psicológicos introvertido e extrovertido. Os introvertidos são pessoas que se relacionam centripetamente com o mundo objectual à sua volta, apreendem os objetos, refletem mais do que agem, recebem a realidade mais reservadamente (dando a falsa impressão de apatia e indecisão), tendem à maior complacência, percebem significados simbólicos nas coisas… São o contrário dos extrovertidos.
Os extrovertidos, por sua vez, também de natureza vital, são centrífugos, se deslocam e influenciam o mundo objectual, são mais voltados para ação, se entusiasmam mais facilmente, experimentam com intensidade os estímulos externos. Desta forma, não podemos pretender que uma pessoa extrovertida valorize a realidade da mesma forma que outra introvertida. E mesmo dentro dos introvertidos não podemos pretender que existam duas valorizações da realidade exatamente iguais, pelo fato da sensibilidade pessoal de cada um ser diferente, apesar de serem ambos introvertidos.
É por causa dessa maneira vital de valorizar a realidade que não podemos pretender estabelecer rígidos critérios para que o outro perceba e valorize os fatos da mesma maneira como o fazemos. De nada adiantam os conselhos bem intencionados, é claro, sobre como fulano deveria estar se sentindo diante de um determinado problema. Nossos conselhos e opiniões são baseados naquilo que sentiríamos caso estivéssemos expostos ao mesmo tipo de situação, entretanto, absolutamente, isso não quer dizer nada.
c. – Categoria Anímica de Valorizar a Realidade
Considerando o que foi dito antes, sobre a pessoa aqui-e-agora ser entendida como resultado daquilo que ela trouxe ao mundo com aquilo que o mundo lhe deu (fenótipo = genótipo + ambiente), para a categoria anímica de valorizar a realidade interessaria a pessoa aqui e agora (fenótipo). O humor, responsável por esse tipo de valorização da realidade seria o estado afetivo e emocional atual no qual se encontra a pessoa. Este estado de humor atual tem em sua base, tanto os elementos constitucionais responsáveis pelo perfil afetivo de cada um (sensibilidade da personalidade), quanto os resultados da ação do destino pessoal de cada um. Vale aqui o ditado segundo o qual “cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça”.
Avaliar a realidade sob o ponto de vista anímico implica em impregná-la com a tonalidade afetiva da personalidade, entendendo-se por personalidade uma constituição dinamicamente atualizada. Enquanto a categoria vital confere uma maneira perene e continuada de se relacionar e valorizar o mundo, a categoria anímica é dinâmica. Exemplo disso são as mudanças de valores durante a vida de uma pessoa, ou mesmo durante um mesmo dia de sua vida, dependendo tanto de seu estado de humor, quanto da experiência vivida.
Pequenas variações anímicas são possíveis ao longo dos dias ou das horas, grandes e sólidas variações anímicas se dão ao longo dos anos. Segundo a teoria jungueana, podem ocorrer grandes mudanças na valorização da realidade durante nossas vidas. Essas mudanças de valores e conceitos, de acordo com Jung, costumam acontecer, normalmente, depois dos 30 anos de idade para as mulheres e dos 40 para os homens. Os valores sofreriam grande e substancial alteração – muito daquilo anteriormente importante deixa de sê-lo e vice-versa.
Assim sendo, a representação anímica não decorre apenas da valorização baseada na constituição (vital) de cada um, mas, sobretudo, na valorização momentânea e pessoal das situações reais e imaginárias baseada na tonalidade afetiva e sentimental do momento.
Os problemas e as adversidades serão enfrentados de maneira muito diferente entre uma pessoa atualmente insegura e outra segura de si, entre uma pessoa otimista e outra pessimista, entre uma pessoa estável e outra ansiosa e assim por diante. Estando uma pessoa estressada, esgotada ou deprimida a valorização da realidade se dará de forma muito mais sofrível e ameaçadora, os problemas terão dimensões muito mais traumáticas, os desafios terão perspectivas muito mais sombrias.
d. – Categoria Espiritual de Valorizar a Realidade
Avaliação espiritual da realidade é aquela que mais se afasta da realidade objetiva, assim como se afasta também das influências sensitivas, vitais e anímica. Essa irreverência espiritual para com a realidade objetiva não reflete uma atitude fantasiosa, como acontece no mundo mágico da criança. Trata-se, sim, de um encontro especial de significações para os aspectos mais abrangentes da vida, da existência e até do não existir mais.
Alguns pensadores associam à categoria espiritual de valorizar a realidade os sentimentos relacionados à Angústia Existencial. Esta Angústia Existencial é patológica na medida em que se traduz por ansiedade antecipatória, por sensação de vazio, sentimentos de solidão, apreensão pelo devir desconhecido… e, seria normal ou fisiológica sempre que servisse à ampliação da consciência que temos do mundo e da vida.
Os sentimentos espirituais são aqueles comprometidos com a valorização intelectual, estética, ética e religiosa. A categoria espiritual de valorizar a realidade diz respeito ao modo de ser e de vir-a-ser no mundo, bem como avalia a relação entre o ser e a vida e entre o ser e o tempo. É aqui que se polariza a questão existencial mais importante do ser. Esta base de sustentação existencial deveria proporcionar conforto e bem estar, entretanto, na sua falta ou enfraquecimento, a ansiedade torna-se opressora, a angústia se exacerba e há retorno para categorias inferiores de valorização da realidade. Volta-se a questões afetivas, constitucionais ou exclusivamente materiais.
Há um ditado, segundo o qual, “quem está bem consigo não se incomoda com os demais”. Esse seria o exemplo da pessoa espiritualmente bem. Essa pessoa teria plena consciência de seu ser e, portanto, não se perturbaria com eventuais opiniões dos demais a seu respeito; não se sentiria diminuído ou humilhado, nem glorificado ou admirado, uma vez que teria plena opinião a respeito das dimensões de seu ser, independentemente das adulações ou contrariedades ambientais.
O desenvolvimento da valorização espiritual pode, com freqüência, atenuar alterações mórbidas determinadas pelas outras categorias inferiores e, em casos patológicos, pode determinar profundos sentimentos depressivos, tendo como pano de fundo a angústia patológica. Evidentemente a valorização espiritual pode ser a maneira mais eficiente para a adaptação do ser ao seu mundo e à sua vida.
Reação Vivencial; como Reagimos à Realidade
Poderíamos chamar esse capítulo de Interação do Sujeito Com a Realidade ou Interação do Sujeito com o Objeto. A todo contacto do sujeito com a realidade haverá sempre, por parte do sujeito, uma reação à ela na forma de emoções e sentimentos. Esta reação esboçada pelo sujeito ao interagir com a realidade chamamos de Reação Vivencial.
Para entender melhor devemos considerar o que e como são essas Reações Vivenciais e, antes disso, considerar até o que são, de fato, as Vivências. As experiências subjetivas acerca daquilo que vivemos devidamente valorizado e particularmente representado dentro de nosso ser são as nossas Vivências. Estas são, então, nossos conteúdos conscientes dos dados perceptivos, representativos, ideativos e emotivos em nossa mente, ou seja, de fato o que estamos vivendo ou foi por nós vivido.
Perder o emprego, por exemplo, pode simplesmente ser um dado objetivo, tal qual o significado (de demissão) no dicionário. Por outro lado, se pode tratar de uma Vivência, quando perder o emprego diz respeito ao meu emprego. Neste caso seu significado ultrapassa o dicionário porque está acontecendo conosco, fazendo parte de nossa vida, sendo representado particularmente em nosso interior. Aqui, perder o emprego será minha Vivência.
Assim sendo, Reação Vivencial é a resposta emocional ou sentimental a uma determinada vivência, ou seja, a maneira pela qual o aparelho psíquico reage às estimulações vivenciais. Um fato típico e fundamental é apresentado ao indivíduo e a partir daí determina uma experiência interna e subjetiva, individual e particular.
Tomando-se por base um fato, considerado aqui um objeto, ao ser experimentado por um ser humano passa a fazer parte de seu “eu” e será, então, introduzido em sua consciência. Uma vez introjetado na consciência este fato jamais ficará isolado do universo íntimo de cada um. Fará parte do dinamismo que compõe nosso ser e pertencerá de alguma maneira, à nossa pessoa.
Como vimos, tal como se passasse por “óculos individuais” que fazem cada um enxergar o mundo a sua maneira, qualquer que seja o fato introduzido em nossa consciência, receberá sempre um tratamento representativo e particular de cada um. Em termos práticos, consideramos as categorias mais cotidianas e atuantes na valorização da realidade a anímica e a vital. Ambas dizem respeito à tonalidade e estado afetivo, portanto, passamos a considerar o afeto como o principal elemento que atribui significado e valor à realidade.
O fato tratado pela afetividade será chamado de Vivência, algo individual e particular a cada um de nós, de acordo com as particularidades de nossos traços afetivos. Os fatos podem ser os mesmos entre as várias pessoas, as Vivências, porém, serão sempre diferentes. Fazendo uma analogia com o modelo médico, a Vivência determina uma Reação Vivencial tal como um alérgeno é capaz de determinar uma resposta imunológica (reação alérgica).
Para que uma Reação Vivencial possa ser considerada normal, Jaspers recomenda 3 ingredientes: uma relação causal, uma relação proporcional e temporal.
1 – Relação Causal
Não se concebe uma Reação Vivencial normal sem que haja uma vivência causadora. A mãe, por exemplo, tendo sido surpreendida por uma febre alta em seu filho durante a noite, dever reagir emocionalmente a esta “causa” com sentimentos de angústia, ansiedade, apreensão, etc., enfim, sentimentos dentro da expectativa da concordância cultural para este evento. A febre do filho é a vivência causadora.
Há pessoas, emocionalmente instáveis, capazes de manifestar uma crise de angústia, choro ou desespero diante da possibilidade de vir a ser demitido, de vir a perder seus pais, etc. Obviamente, trata-se de possibilidades, entretanto, não é normal viver experimentando sistematicamente tais sentimentos antecipados. As pessoas portadoras de algum transtorno de ansiedade podem experimentar desagradáveis sentimentos de tensão muito antecipadamente, tomando o evento futuro como ameaça. Esta é uma maneira particular de valorizar a realidade.
2 – Relação Proporcional
Em situações normais, os sentimentos determinados pela Reação Vivencial devem guardar uma compreensiva proporcionalidade com a vivência causadora, ou seja, o conteúdo da reação acha-se numa relação compreensível com sua causa. Essa proporcionalidade é também argüida pela concordância cultural.
Utilizando o exemplo anterior, não devemos esperar que a mãe do filho com febre se atire janela abaixo ou se descabele histericamente diante dessa situação. Igualmente, não se espera que ela manifeste sentimentos de exaltação e alegria transbordante, mas, será compreensível ela apresentar sentimentos de ansiedade, medo, angústia ou inquietação proporcionais à causa.
Na tentativa de avaliar a tonalidade afetiva podemos considerar as Reações Vivenciais. Uma boa atitude semiológica seria imaginar como reagiria a maioria das pessoas diante de determinada situação vivenciada pelo paciente.
3 – Relação Temporal
Em seu curso temporal a Reação Vivencial deve depender da permanência da Vivência causadora, esmaecendo e, finalmente cessando algum tempo depois de desaparecer a causa.
Ainda usando o mesmo exemplo anterior da mãe com filho febril, sua ansiedade e angústia deverão desaparecer quando a saúde do filho for restabelecida. O mesmo acontece, por exemplo, em relação à ansiedade de determinadas pessoas, ao aguardarem o resultado de um exame laboratorial ou o atraso indesejável da menstruação. Tal sentimento dever desaparecer tão logo os resultados sejam satisfatórios.
Conflitos Íntimos
Saber sobre os Conflitos Íntimos é importante para o entendimento dos sentimentos decorrentes de causas subjetivas, ou seja, da Ansiedade, Angústia, Depressão, Pânico, Fobias que aparecem sem uma causa objetiva e concreta aparente.
O ser humano sempre viveu diante do dilema entre aquilo que ele quer fazer, aquilo que deve fazer e aquilo que consegue fazer. Portanto, nem sempre estamos fazendo aquilo que queremos, muitas vezes não queremos fazer aquilo que devemos, outras vezes queremos e devemos fazer aquilo que não conseguimos. Enfim, as variáveis de combinações são amplas, de forma a favorecer constantemente um conflito entre as três pulsões.
Graficamente, com finalidade didática, simbolizamos o conflito na imagem de um banco de três pernas e, diante de um desequilíbrio (conflito) entre elas teríamos a ansiedade ou angústia.
Essa situação não diz respeito apenas às questões de nossa vida prática, diz respeito também aos nossos sentimentos. Se devemos gostar ou não de determinada pessoa, gostar ou não de determinada atitude nem sempre obedece ao querer gostar ou não, ou ao conseguir gostar ou não. Às vezes odiamos ou gostamos mesmo não querendo, outras vezes mesmo não devendo, outras vezes ainda, mesmo devendo e querendo não conseguimos.
Em alguns casos não se consegue gostar da mãe, por exemplo, mesmo sabendo que deveria gostar (afinal, deve-se amar as mães incondicionalmente pelo simples fato de serem mães), gerando assim um conflito. Quem vive o drama de querer namorar uma pessoa embora devesse ficar com outra, também vive um conflito. Quem quer ser ator embora deva continuar sendo advogado, idem, ou querer ter um filho homem e só consegue gerar meninas, querer e dever ser respeitada pelo marido mas não consegue, dever trabalhar mais mas não querer, querer ficar em casa mas dever sair e assim por diante.
Como se vê, a própria existência consciente faz com que todos estejam fisiologicamente sujeitos ao conflito. Com o afeto normal conseguimos conviver bem com os conflitos, entretanto, estando a afetividade comprometida esses conflitos se tornarão incômodos e gerarão ansiedade e/ou angústia patológicas. Na Depressão, por exemplo, um conflito com o qual convivíamos pacificamente por muito tempo passa a ser insuportável.
Algumas vezes não temos consciência plena do conflito, uma vez que inconscientes. Isso geralmente acontece em pessoas com dificuldades de expressar sentimentos, em personalidades muito ativas, determinadas e que não conseguem valorizar as questões emocionais. Principalmente nesses tipos de personalidade, quando a afetividade é abalada, os conflitos inconscientes causam uma ansiedade importante o suficiente para produzir uma Síndrome do Pânico, ou Fobia, etc.
Os Conflitos Íntimos, traumas e frustrações do presente e do passado e os complexos compõem aquilo que chamamos de causas subjetivas para as Reações Vivenciais Não-Normais. E as causas subjetivas causarão tanto mais incômodos e tanto mais Reações Vivenciais Não-Normais quanto mais frágil estiver a afetividade.
Conceito Psicológico de Complexo
O conceito do complexo foi criado por Jung para compreender os vários grupos de conteúdo psíquico que, desvinculando-se da consciência, passam a atuar no inconsciente. Segundo Jung, no inconsciente o complexo continua numa existência relativamente autônoma, a influir sobre a conduta. A Psicologia dos Complexos, idealizada por Jung, mais tarde foi chamada Psicologia Analítica.
Não há, necessariamente, uma influência sempre negativa dos complexos. Às vezes essa influência assume características positivas, quando se torna um estímulo para novas possibilidades criativas. Segundo ainda a linguagem jungueana, os complexos são avaliados através da análise da persona, que é o papel social (comportamento, atitude) da pessoa. Na teoria jungueana um complexo é “um grupo de imagens relacionadas entre si que têm um acento emocional comum e que se formam em torno de um núcleo arquetípico”.
Jung definiu os complexos como conteúdos autônomos do inconsciente que se manifestavam, em sua experiência, sob a forma de demora para responder à palavra-estímulo ou sob a forma de emoções inesperadas diante da palavra-estímulo (técnica da livre associação). Esse próprio autor ampliou o conceito de complexo e passou a usá-lo para designar conteúdos emocionais reprimidos capazes de provocar distúrbios psicológicos permanentes ou sintomas de neurose.
A ideia de autonomia dos complexos era tão forte a ponto de Jung afirmar que os “complexos se comportam como seres independentes” … ou que “complexos são psiques parciais”. Ainda seguindo a ideia de Jung, o complexo é considerado uma reunião de imagens e ideias, conglomeradas em torno de um núcleo derivado de um ou mais arquétipos, e caracterizadas por uma tonalidade emocional comum. Quando entram em ação os complexos contribuem para o comportamento e são marcados pelo afeto, quer a pessoa esteja ou não consciente deles.
Didaticamente e sem recorrer à difícil ideia dos arquétipos, para que o entendimento do complexo tenha melhor aplicação clínica, poderíamos considerar um núcleo representado por um forte sentimento, rodeado por um grupo de imagens correlacionadas.
As vivências que porventura resvalem em alguma dessas imagens correlacionadas podem ativar o complexo com toda sua força produzindo uma Reação Vivencial Não-Normal, a qual poderá se traduzir em uma conduta problemática ou um comportamento neurótico.
Tal como no caso dos conflitos, a ocorrência dos complexos parece ser igualmente fisiológica, entretanto, na saúde afetiva a pessoa consegue conviver muito bem com seus complexos. O mesmo não acontece diante da afetividade alterada, quando o complexo tende a tomar posse da personalidade, comandando o comportamento e alterando a própria cognição.
Uma das alterações comportamentais proporcionada pela eventual supremacia dos complexos costuma ser o uso exagerado dos Mecanismos de Defesa do Ego, evidentemente atendendo ao propósito de aliviar a angústia causada pelo complexo. Um complexo cujo sentimento central seja, por exemplo, de que “estão pensando que sou homossexual” poderá fazer com que a pessoa tenha um comportamento marcadamente caracterizado pela projeção, determinando uma atitude exageradamente masculina ou feminina, conforme o caso, para dirimir quaisquer dúvidas sobre sua orientação sexual.
As Emoções
Não há dúvida que a conotação dos estados afetivos agradáveis e desagradáveis é, na realidade, bem mais ampla que as sensações do prazer e da dor, na acepção puramente sensorial. Os Estados Afetivos Sensoriais implicam numa representação mais íntima de prazer ou desprazer.
O amargo, por exemplo, é desagradável, sem ser necessariamente doloroso, o mesmo podendo suceder com as sensações de fome, calor, frio, sede, etc. Aspirar um fino perfume, ouvir um belo trecho melódico ou contemplar panoramas são representações agradáveis, sem que constituam prazeres físicos propriamente ditos, isto é, não se tratam de prazeres absolutamente localizáveis em algumas partes do nosso corpo.
Emoções mistas são aquelas que envolvem mesclas de estados afetivos internos contrastantes e que se distanciam do sensível orgânico. Por estados afetivos contrastantes entendemos o Conflito emocional consciente, com maior ou menor repercussão na conduta individual.
Estas emoções se compõem de estados afetivos de conteúdos vários e opostos, caracterizando uma representação da realidade sob o ponto de vista da angústia existencial ou, algumas vezes, da Angústia Patológica. Para falar da Angústia temos de falar antes de sua origem; os Conflitos.
Para a manutenção de uma situação de equilíbrio entre o indivíduo e seu meio e, principalmente, entre ele e si próprio, é necessário um relacionamento harmônico entre o peso e a força de suas tendências, das possibilidades de seu Eu e das exigências de seu ambiente.
Nossas tendências dizem respeito àquilo que nós, de fato, queremos, as possibilidades do Eu são, realmente, aquilo que conseguimos através da performance pessoal de cada um e as exigências do meio são as regras, normas e padrões culturais, ou seja, aquilo que devemos.
Assim sendo, se fosse possível vivermos sem conflito, seria necessário uma perfeita combinação daquilo que queremos com aquilo que devemos, juntamente com aquilo que conseguimos. Como se vê, e se percebe consultando nossa intimidade, dificilmente estamos fazendo agora exatamente aquilo que queremos, nem sempre estamos desejando ou fazendo aquilo que devemos desejar e fazer e, muitíssimas vezes, não conseguimos fazer tudo o que queremos, ou mesmo devemos. Portanto, a plena harmonia dessas três forças interiores é incomum em nossa vida, logo, termos conflito é humanamente fisiológico.
As coisas que devemos dizem respeito ao conjunto de normas e regras oferecido à pessoa pelo sistema sócio-cultural. São os princípios éticos e morais que regem uma sociedade e nos ditam procedimentos e condutas. É o Super-Ego que argüi nossos atos, nossos pensamentos e até nossos sentimentos. As coisas que queremos são representantes de nossa natureza humana, são as pulsões, vocações e inclinações que atenderiam nosso bem estar, tal qual o Id, da teoria freudiana. Aquilo que conseguimos representa nossa própria performance como pessoa, seja emocionalmente, intelectualmente ou fisicamente, tal como o Ego, descrito por Freud.
Diante do conflito o ser humano experimenta a angústia ou ansiedade, portanto, sendo o conflito uma constante fisiológica na vida humana, também a angústia e a ansiedade permeiam diuturnamente a existência da pessoa. A adaptação vivencial à esses sentimentos (angústia e ansiedade) caracteriza o bem estar emocional e a saúde psíquica.
Ao se pretender boa adaptação da pessoa aos seus conflitos, indiretamente uma boa adaptação à sua angústia existencial e ansiedade fisiológica, não estamos querendo dizer que a pessoa deve conformar-se sempre diante de seus conflitos. Adaptação e conformismo são duas coisas diferentes. Na realidade a pessoa deve sim, estar sempre inconformada com a situação atual e, diante desse inconformismo, tentar fazer com que seu amanhã seja melhor que hoje.
Entretanto, se a pessoa estiver, além de inconformada, também desadaptada, ficará doente (sofrerá). Por isso dizemos que a desadaptação concorre para o sofrimento enquanto o inconformismo concorre para a melhoria das condições. Reclamar e não se conformar diante de uma situação indesejável e caótica de nossa vida é sadio e pode proporcionar iniciativas no sentido de melhorar alguma coisa, desadaptar-se à essa situação significa adoecer por causa dela.
Portanto, não interessa muito saber se a pessoa tem ou não conflitos pois, de certo os tem. Interessa sim, saber como ela reage à esses conflitos, como ela experimenta a angústia e a ansiedade, mais precisamente, o que ela faz com seus conflitos. Estando a Afetividade bem estruturada, as pessoas conseguem conviver bem e normalmente com seus conflitos mas, diante dos transtornos emocionais esses conflitos, sejam eles recentes ou antigos, passam a causar um grande incômodo. Na realidade o que se estuda na pessoa é sua sensibilidade aos seus conflitos; as mais sensíveis sofrem mais com eles.
Quem Sou Eu
Apesar dos milhares de anos conseguindo se adaptar à natureza, sobreviver às intempéries, aos terremotos, ao animais ferozes, às epidemias e toda sorte de perigos, o ser humano ainda continua vítima daquilo que sempre lhe pareceu o menor dos perigos: seu semelhante e ele mesmo. É intrigante o fato de não termos conseguido dominar essas duas ameaças ao longo de toda nossa história. Não queremos dizer dominá-las no sentido de subjugá-las ou conquistá-las.
A questão se refere à dominá-las no sentido de não mais permitirmos que elas nos causem sofrimento. Talvez então, o mais correto seria pleitearmos integrar-nos harmonicamente à elas e não, propriamente, dominá-las.
Durante toda nossa história temos experimentado algum sofrimento, mágoa ou desencanto com nosso próximo e, não obstante, temos nos permitido sofrer, magoar ou desencantar na medida exata do quanto não nos conhecemos. Muitas vezes encontramos nas relações familiares, profissionais, sociais e de amizade barreiras e dificuldades para compreendermos nosso semelhante e por sermos compreendidos por ele.
A dificuldade em estabelecer comunicação satisfatória e desejável acaba gerando desarmonias de relacionamento, tornando nosso convívio interpessoal empobrecido, distante e difícil. Aliás, algumas vezes temos dificuldades em estabelecer, inclusive, um bom relacionamento conosco mesmo.
É possível que a causa principal de não termos logrado sucesso total no relacionamento interpessoal e conosco mesmos tenha sido subestimar esses nossos adversários. A grande dificuldade foi, talvez, devida ao fato de nossa biologia ter-nos feito seres gregários, portanto, incapazes de viver sozinhos e, ao mesmo tempo, seres egocêntricos, portanto, difíceis de viver bem com o outro: sozinhos não conseguimos viver e, paradoxalmente, com o outro também temos dificuldades. Mas, para compensar essa peça que a natureza nos pregou, fomos apetrechados de um atributo muito especial: somos capazes de mudar.
Por se preocupar com a pessoa, aliviando seu sofrimento e sua angústia, a psiquiatria reconheceu que só se consegue algum progresso propondo mudanças na pessoa e não no mundo à sua volta. Isso quer dizer que, diante da possibilidade de uma pessoa estar sofrendo mágoas ou frustrações produzida por outra pessoa ou por circunstâncias ao seu redor, melhor será pleitear que aquela pessoa não se magoe e nem se frustre ao invés de tentar agir nos outros e nas circunstâncias.
Antes de continuarmos será proveitoso saber que existimos nesse mundo de 3 maneiras diferentes. Numa primeira forma existimos como alguém que é para nós mesmos, ou seja, somos alguém para nós mesmos, portanto, representamos uma determinada pessoa para nossa própria consciência sob a forma de auto-estima.
Em segundo lugar, somos alguém para nosso próximo, ou seja, representamos um determinado personagem social dirigido aos nossos espectadores e, em terceiro, somos essencialmente e realmente alguém, muito embora sem termos, necessariamente, uma nítida consciência de como somos de fato e em nossa essência.
Por dedução devemos supor que nosso próximo também tenha uma existência tripla, ou seja, que ele possa ser alguém para si e segundo sua própria opinião, alguém para os outros, de acordo com aquilo que aparenta ser e, finalmente, alguém de fato e essencialmente humano.
No relacionamento interpessoal vamos estudar quem é esse Eu que vai se relacionar com o outro e consigo mesmo e quem é esse outro, que também vai se relacionar com o Eu.
O Que eu Sou Para Mim
Ser para nós mesmos significa ter consciência de nossa própria pessoa. Em resumo, diz respeito à nossa auto-estima. Sentir-se bem consigo mesmo, representar a nós mesmos de forma satisfatória é o ideal emocional.
Há alguns estados emocionais ou características de personalidade onde a auto-estima está prejudicada. No primeiro caso a pessoa ESTÁ passando por um momento onde, por diversas razões emocionais, sua auto-estima encontra-se depreciativa e no segundo caso, a pessoa tem um traço incômodo de personalidade que proporciona uma constante maneira de auto depreciar-se.
Hipoteticamente podemos exemplificar as consequências da auto-estima sobre a maneira de nos sentirmos diante das adversidades da vida da seguinte maneira: vamos imaginar nosso envolvimento numa briga de rua. Nosso medo, portanto, nossa ansiedade, será proporcional ao tamanho de nosso adversário.
O tamanho do adversário será sempre em relação à nós mesmos; maior ou menor que nós, é o que interessa. E como sabemos nosso próprio tamanho? A consciência que temos de nós mesmos é nossa auto-estima. Se nos sentimos fortes, grandes, competentes, saudáveis e espertos a ansiedade diante dos adversários será muito menor caso nos sentíssemos fracos, combalidos, frágeis, incompetentes, doentes, etc.
Ora. Sabemos que a ansiedade excessiva proporciona um estado de estresse suficientemente forte para comprometer seriamente a adaptação. Assim sendo, diante de uma auto-estima prejudicada, a adaptação ficará, também, seriamente prejudicada.
De um modo geral, quem ou o que eu represento para mim mesmo é determinado pelas Categorias Anímica e Vital de valorizar a realidade (veja acima), realidade da qual minha auto-imagem faz parte. Nosso estado de ânimo (Categoria Anímica – afeto) está diretamente relacionado às oscilações das maneiras como nos vemos, ora mais positivamente, ora negativamente, e o estado vital (Categoria Vital – personalidade) está relacionado à maneira mais constante de como nos representamos à nós mesmos.
O Que Eu Sou Para o Outro
Será que nossa atitude interpessoal ou nossa postura social é sempre a mesma e constante nas diversas situações de nosso cotidiano? Será que nos apresentamos da mesma forma na praia e no velório ou no trabalho e no futebol? Não. Normalmente, e em nome do bom senso, devemos nos apresentar adequadamente às expectativas de nosso público, portanto, de alguma forma estamos quase sempre desempenhando algum tipo de papel em atenção aos nossos expectadores.
Para o sucesso social do ser humano há sempre uma imperiosa necessidade da pessoa se apresentar ao outro através de uma identidade pessoal adequada. Não se vai à praia com traje social e nem à um casamento de maiô. Embora isso seja democraticamente possível, corre-se o risco de uma internação psiquiátrica.
Vamos chamar essa postura versátil de adequação às diversas situações de nosso dia-a-dia de PAPEL SOCIAL. Estamos, pois, diuturnamente desempenhando algum tipo de PAPEL SOCIAL.
A função dos PAPEIS SOCIAIS está relacionada à própria identidade da pessoa em seu meio social, uma maneira desejável de se apresentar aos nossos semelhantes e assegurar uma identidade pessoal mais aceitável possível.
Podemos comparar esses Papeis Sociais à nossa própria roupa; ninguém será capaz de apresentar-se nu para seu meio social e, além disso, para cada circunstância social nos apresentamos com um vestuário adequado. Para irmos à praia escolhemos os trajes de banho e não uma roupa social e vice-versa.
Embora sejamos obrigados à adequar nosso vestuário às circunstâncias, continuamos sendo sempre a mesma pessoa; somos aquela mesma pessoa que se apresenta formalmente num jantar de gala e aquela que se apresenta descontraidamente na praia.
O vestuário é capaz de modificar nossa identidade para nossos observadores, de tal forma que, vestindo roupas sociais (terno e gravata) não somos considerados da mesma maneira como se estivéssemos usando apenas roupas íntimas, apesar de sermos a mesma pessoa. Somos exatamente o mesmo que esbraveja e ofende durante uma partida de futebol e aquele que se penitencia e ora na igreja, aquele que afere lucros e aquele que faz caridade.
O sucesso social da pessoa, tão glorificado pela nossa cultura, é conquistado na proporção de um bom desempenho artístico e, conseqüentemente, nossa aprovação social estará de acordo com a qualidade do personagem que oferecemos aos nossos espectadores.
Durante o correr do dia podemos desempenhar vários PAPEIS SOCIAIS; somos pai, filho, esposo ou irmão compreensivos e amáveis dentro de casa, somos motoristas arrojados no trânsito, empresários ardilosos no banco, compradores exigentes ou vendedores flexíveis na empresa e assim por diante. E nosso sucesso dependerá da fidelidade para com nosso personagem.
Normalmente conseguimos mais comida quando parecemos estar com fome do que quando estamos realmente com fome mas não aparentamos, teremos mais crédito quanto mais aparentarmos honestidade, seremos mais convincentes quanto mais parecemos conhecer aquilo que falamos. Tudo isso espelha o sucesso de nosso personagem.
Portanto, existir para o outro implica em desempenhar muito bem o PAPEL SOCIAL, implica em adequarmos nosso personagem ao anseio de nosso expectador. A pessoa que procura um médico, por exemplo, antes de chegar ao consultório já possui uma perspectiva de imagem do médico, mais precisamente, da postura do médico. O médico, por sua vez, terá maior sucesso quanto mais próximo estiver da perspectiva de seu cliente.
O Que Eu Sou de Fato
Sou, de fato, representante da espécie humana, tanto quanto o são todos meus semelhantes. Portanto, habita em minha personalidade todos os traços encontrados nas demais pessoas mas, apesar de não haver nada de especial em mim que não haja em todo mundo, a combinação desses traços em meu interior é que me faz uma pessoa única e exclusiva.
Se fosse possível listar todos adjetivos do ser humano, tais como lealdade, ambição, fraternidade, inveja, maldade, companheirismo, egoísmo, caridade, etc., veríamos que esses infindáveis atributos, independentemente de seus méritos e deméritos, existem em minha pessoa assim como em todas as pessoas.
Acontece que todos esses adjetivos combinam-se entre si para constituir minha particular personalidade, uns sobressaindo-se aos outros, alguns manifestando-se em quantidades diversas, uns permanecendo dormentes, enfim, todos arranjam-se de forma a tornar-me único.
Portanto, de maneira mais ou menos grosseira, para aprimorar nossa compreensão sobre o outro basta investigarmos nosso próprio interior. Alguns de nossos traços mais primitivos e instintivos são domesticados e se apresentam socialmente dissimulados através de nossos PAPEIS SOCIAIS.
A gula, a avidez, a sedução, a inclinação para a posse e o orgulho, por exemplo, podem ser perfeitamente domesticados e se apresentarão através dos mais variados subterfúgios sociais. Da mesma forma, a vingança, a ira e a crueldade podem vestir uma roupagem de justiça, assim como também, o sentimento de culpa e a inclinação à barganha com vantagens podem se traduzir em atitudes caridosas e filantrópicas.
Normalmente temos uma tendência em recriminar nos outros as coisas que não conseguimos ou não nos permitimos (o que dá no mesmo) fazer. Causa-nos profundo constrangimento e irritação observar nos outros a manifestação livre de alguns traços primitivos, os quais não nos permitimos usar. Entretanto, consultando nossa intimidade, veremos que possuímos também esses mesmos traços. Apenas não nos permitimos usá-los.
Diante da frustração de vermos nos outros atitudes que não nos permitimos mas que pululam dentro de nós, primeiro dissimulamos essa nossa incapacidade sob rótulos socialmente enobrecedores, tais como “prefiro ficar com a consciência tranqüila” ou “isso está moralmente errado”, ou finalmente, “quero estar de bem com Deus”.
Depois condenamos as pessoas que procedem dessa forma deplorável. Veja, por exemplo, nosso sentimento de rancor ao vermos, num congestionamento de trânsito, pessoas que passam pelo acostamento e nos deixam para trás. Torcemos para que encontrem um caminhão parado no acostamento que os impeça de prosseguir ou que tenha lá um policial austero e multe todos eles. O que queremos dizer é que existe também em nós a pulsão da vantagem sobre os demais, tanto quanto existe nas pessoas que fazem valer fortemente essa inclinação.
Finalizando podemos dizer que, de modo geral e excluindo-se as aberrações de nossa espécie, somos o mesmo que o outro, tão humano quanto ele, tão ávidos de prazeres, tão carentes de carinho, tão necessitados de bem-estar quanto ele e, se alguma grande diferença pode ser observada, é o fato de estarmos do lado de cá do balcão e ele do lado de lá. Nosso desconsolo é desesperador ante o sofrimento ou ante a morte desse nosso outro mas, inevitavelmente, entre uma lágrima e outra, acabamos pensando “antes ele do que eu”.
Quem é o Outro
Agora está bem mais fácil entendermos Quem ou O Que é o outro, mais precisamente, O Que o outro representa para nós. Soubemos que a realidade é representada, em todos seus aspectos, de maneira muito particular e íntima a cada um de nós através do capítulo “REPRESENTAÇÃO, PROCEPÇÃO E APERCEPÇÃO”. Soubemos que há varias maneiras (categorias) de valorizarmos essa realidade através do capítulo “OS VALORES E A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE”. Soubemos também como reagiremos emocionalmente e sentimentalmente à realidade (onde o outro está incluído) no capítulo “COMO REAGIMOS À REALIDADE”.
Assim como os fatos, os eventos e os objetos, também as pessoas (o outro) farão parte da nossa realidade, ou seja, representarão algo muito pessoal e terão uma valorização muito pessoal para nós.
Muito embora as coisas da realidade, como o outro, os objetos e os fatos, possam ter um determinado valor intrínseco e objetivo, como é a cotação do ouro ou a autoridade do Papa, por exemplo, o real valor subjetivo (que realmente mais me interessa) só pode ser alocado ao objeto através do sujeito, ou seja, somente eu mesmo serei responsável pelo valor que atribuo às coisas.
De certa forma, em geral o outro representará para mim aquilo que eu permito. O outro representará uma ameaça, uma coisa boa, um adversário, um amigo, uma namorada, um cúmplice, um companheiro ou um concorrente na medida em que represento-o dessas maneiras. Portanto, compreendendo a questão como compreendemos agora, será incorreto dizer que fulano me irrita, me humilha, me agride ou me ameaça. O mais correto será dizermos eu me sinto irritado com fulano, eu me sinto humilhado, eu me sinto agredido ou ameaçado.
Há, evidentemente, situações onde a objetividade dos fatos é contundente e não deixa margem à dúvidas representativas. Diante de um assalto, por exemplo, aquela pessoa que está me apontando a arma representará, de fato, o assaltante, uma séria ameaça à vida. Assim como o chefe no emprego deve representar-me, obrigatoriamente, meu chefe. Entretanto, em alguns casos, o valor subjetivo representado pelo chefe pode ultrapassar seu suposto valor objetivo e, sendo assim, diante dele a pessoa acaba experimentando emoções e sentimentos tal como se estivesse diante do assaltante, diante de uma séria ameaça.
Voltamos a enfatizar que o valor atribuído ao objeto, nesse caso ao outro, emana e provem do sujeito. Antes então, há que se perguntar Quem ou O Que sou eu, esse sujeito que se depara com o outro e, depois disso, Quem ou O Que é esse outro em relação ao Eu; será maior, menor, mais forte, mais fraco, igual, semelhante, parecido, enfim, qual será o grau de comparação entre o Eu e o outro?
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